Quem participou ou assistiu a vacinação dos idosos em Manaus nesse fim de semana viu um sinal de esperança no olhar de quem recebeu a primeira dose dos imunizantes de Oxford/AstraZeneca. Em todos os olhares é possível enxergar a ansiedade e a gratidão pelo privilégio de ter saúde em plena pandemia, aos oitenta, noventa, cento e poucos anos.
“Estava pedindo à Deus que chegasse esse dia para normalizar tudo. Nós temos que ter fé em Deus porque Deus é maior que tudo, temos que acreditar e confiar”, declarou a idosa Maria Izélia, pouco antes de receber a vacina. Ela estava emocionada e chegou a ficar nervosa, mas logo passou, depois que a técnica de enfermagem da Secretaria Municipal de Saúde tirou a agulha do seu braço direito.
A vacina tem sido um alento para quem já sofreu tanto, seja por causa da doença ou pela dor do outro. Como não se emocionar com os familiares vibrando com a conquista dos pais? O filho da dona Maria da Silva Oliveira não escondeu a empolgação ao ver a mãe voltando para casa imunizada.
“Hoje é um dia que vai ficar marcado na história, que a gente vai ter nossa saúde de novo. Primeiro a minha mãe, depois vai chegar a minha vez. Eu tenho 56 anos, mas vou vibrar nesse dia também pra tomar a vacina”, declarou.
São homens e mulheres que já viveram a maior parte de suas vidas e, por quase um ano, viram a própria saúde ameaçada e milhares de perdas ao redor. Eles, agora, choram de alegria por estarem muito próximos da proteção. Os amazonenses ainda percorrem, quase às cegas, um caminho em busca da redenção e o fim desse período fúnebre.
A quantidade de vidas perdidas só cresce e faz com que todos já tenham perdido alguém próximo ou conheçam um amigo ou conhecido que ficou em luto nos últimos dias por causa do coronavírus. São mais de 8 mil amazonenses que não resistiram à Covid-19 e hoje fazem muita falta aos seus familiares.
Desde o início da pandemia, o Amazonas ganhou destaque nacional, por causa de uma série de falhas no combate ao vírus. Primeira onda, segunda onda, falta de oxigênio, desvios de vacina, falta de assistência aos indígenas, escassez de leitos e profissionais, descontrole nas contaminações, nova variante e tantos outros assuntos que precisam ser registrados, pelas vítimas, pelas famílias enlutadas e para que não se repitam.
Quando a cidade parou de respirar
O eletricista Roberto Araújo ainda vê um horizonte acinzentado em meio à pandemia em Manaus. O cenário ainda é de guerra, dentro e fora dos hospitais. Os últimos dez dias têm sido dramáticos para conseguir manter a tia, a prima e a avó de 94 anos respirando. Com a indisponibilidade de leitos na capital, elas estão sendo cuidadas por familiares em casa.
“Tentamos internar no (Hospital) 28 de Agosto, não aceitaram devido à idade. Ela estava com o pulmão comprometido, estava com pneumonia, mas não tinha infecção que pudesse comprometer de forma muito grave para internar. Ficaram com medo de ela pegar uma infecção pior no hospital, aí orientaram a gente a voltar para casa. O que a gente não pode é perder ela”.
No dia 11 de janeiro, o eletricista já havia perdido um tio e uma tia para a Covid-19 e está lutando para salvar as outras infectadas, sem que elas saibam das perdas que já ocorreram. Ele e o primo Alexandre Lima deixaram de trabalhar para cuidar da família e, há uma semana, se revezam na fila que se formou na porta de uma fábrica de oxigênio no Polo Industrial de Manaus para reabastecer os cilindros, comprados com recursos de doações.
Roberto e Alexandre integram uma nova linha de frente, composta por centenas de amazonenses que precisam comprar o insumo mais crucial para lidar com uma doença respiratória: o oxigênio, escasso e superfaturado. Mesmo abalados, eles não esquecem que são o esteio da família nesse momento e não deixam que a tristeza tire a própria força, renovada a cada vez que reproduzem esse vídeo da avó:
“Estamos em uma sobrevivência. Nossa meta é salvar nossa família. A gente não pensa em nada mais”, afirma Roberto.
Alexandre sente o peso da responsabilidade de garantir o oxigênio para a mãe e a proteção divina por não ter adoecido ainda, mesmo estando em locais de grande circulação do coronavírus, como hospitais. Sentado no chão ao anoitecer, aguardando a liberação do cilindro cheio desde às 9h, ele se emociona ao lembrar da cena mais marcante dessa pandemia.
“O que mais me marcou foi a minha mãe pedindo socorro com os olhos, com falta de ar e a gente correndo com ela pra cima e pra baixo pra conseguir oxigênio. Foi terrível”, lembra.
A demanda por oxigênio cresceu de maneira assustadora no mês de janeiro no Amazonas. O consumo, que estava na ordem de 30 mil metros cúbicos no dia 31 de dezembro de 2020, saltou para perto de 60 mil no dia 8 de janeiro e chegou a 80 mil metros cúbicos atualmente. A produção local da White Martins, a principal empresa fornecedora do Estado, é de cerca de 28,2 mil metros cúbicos. A conta não fecha e não há sinal de redução na demanda.
Doações ainda chegam de várias regiões do País, em quatro voos diários da Força Aérea Brasileira, outros voos comerciais e fretados, além de carretas e balsas, mas a dificuldade logística de Manaus, isolada no meio da floresta amazônica, é o principal entrave para que o insumo chegue com mais rapidez aos hospitais.
A madrugada de sexta-feira (15) foi a mais crítica. Os cilindros de todos os hospitais da capital estavam praticamente vazios desde a tarde de quinta (14), primeiro dia de desabastecimento. Mesmo com o risco de endividamento, quem conseguiu comprar um cilindro cheio ou reabastecer nas fábricas e distribuidoras garantiu mais um tempo de vida às pessoas com baixa saturação de oxigênio causada pela doença. Quem não encontrou condições para suprir a falta do insumo não resistiu. Os relatos nas portas dos hospitais e Serviços de Pronto Atendimento refletiam o cenário de desespero, angústia e luto, como esse na entrada do SPA Joventina Dias à Rádio Rio Mar:
“Muitas pessoas morreram ao lado da minha mãe há pouco por falta de oxigênio. A gente não sabe mais o que fazer. A gente faz um apelo pelo ser humano de ver o outro não ter com o que respirar. Minha mãe está de um lado e a vizinha ao lado dela não tem com o que respirar, começa a se debater e é assim que ela está morrendo. Não tem uma injeção para que ela não sinta dor, ela morre asfixiada”.
Naquela sexta-feira, Roberto Araújo dormiu na porta da fábrica de oxigênio, tentando recarregar o cilindro da avó, o que ocorreu às 2h da madrugada. “Conseguimos chegar a tempo com o oxigênio da minha avó, que estava no vermelho, e voltamos de novo para abastecer de uma tia que também estava precisando”, relata.
Quem também fica sob sol e chuva no local onde é produzido o oxigênio é a autônoma Joicyane Saboia. Ela cuida da avó Maria Amélia, de 70 anos, que tem comorbidades e sofre com a Covid-19. Ainda no Hospital 28 de Agosto, a família foi alertada pelo médico de que, se não conseguissem um cilindro próprio de oxigênio, a idosa morreria em poucas horas. Em uma campanha nas redes sociais, Joicyane conseguiu um cilindro pequeno emprestado e decidiu levar a avó para ser tratada em casa, por causa da superlotação na unidade de saúde e a falta de informações, já que familiares não podem acompanhar os pacientes internados.
Na última quinta-feira (22), a pessoa que emprestou o cilindro à família também adoeceu e pediu o equipamento de volta, foi quando a autônoma emprestou outro cilindro até receber uma encomenda feita pela internet. Os valores dos cilindros de oxigênio em Manaus dispararam. Alguns de 5 litros que eram vendidos a R$ 2,5 mil reais chegam até a R$ 7 mil. Pela internet, Joicyane encontrou por R$ 830.
Por mais que a solidariedade da população em geral, artistas, empresas e até do Estado de Bolívar, na Venezuela, tenha feito com que muitas doações de cilindros de oxigênio chegassem à Manaus, a cidade ainda não alcançou a estabilidade. As usinas que captam oxigênio da atmosfera e o transformam na forma medicinal, apesar de salvarem muitas vidas, também não suprem a alta demanda. Carregamentos enviados pelo Governo Federal só começaram a chegar 10 dias após o início do desabastecimento. Chegou pela BR-319, única estrada que liga o Amazonas ao restante do Brasil, um comboio com 160 mil metros cúbicos de oxigênio, mas foi interditada para veículos pesados logo depois por causa das péssimas condições do chamado “trecho do meio”.
O número de contaminações e internações só aumenta. Foram mais de 5 mil novos infectados na quinta-feira (21), o recorde diário da pandemia. No sábado (31) foram 4.420 novos casos. Mais de 300 pacientes já foram transferidos em voos da FAB para continuarem o tratamento em outros Estados do País, que se solidarizaram com a situação do Amazonas. Porém, são mais de 600 pessoas na fila, aguardando a liberação de um leito. Diante desse cenário, um cilindro de oxigênio é utilizado em até três pacientes, uma tentativa de médicos e enfermeiros para salvar mais vidas. O racionamento ainda é uma realidade.
Efeito cascata no interior e a dependência de Manaus
Cerca de três dias depois de acabar o oxigênio nos hospitais de Manaus, o caos chegou ao interior do Amazonas. Considerando a dimensão continental do Estado, até a cidade vizinha Iranduba é considerada interior, distante cerca de 30 km da capital.
“Só Deus mesmo pra nos ajudar e dar a vitória para nossas vidas porque o Iranduba está necessitado. O Iranduba está num caos que você não imagina. As pessoas levam doações, alimentos, tem fisioterapeutas, tem psicólogos que cantam pra eles ficarem alegres. Tem gente que fica até três horas da madrugada dando merenda pra gente que está no hospital”.
O relato é de Francisco dos Santos e mostra a importância da solidariedade em meio à crise no Amazonas. Há uma semana, ele enfrenta idas e vindas entre Iranduba e Manaus, em busca de oxigênio para abastecer o hospital municipal Hilda Freire. Em Manaus, ele também encontrou apoio de um grupo de motoristas de aplicativo que deixaram de trabalhar para distribuir alimentação aos que passam horas nas ruas. A saga era para manter vivos os dois amigos, o pastor Paulo Lima e a esposa Cleovanir Sales. Infelizmente, ela não resistiu e ele ainda luta para que Paulo vença a Covid-19.
O pastor e a esposa foram infectados pelo coronavírus, mas não sabiam. Só descobriram quando o quadro de saúde ficou grave. Nos primeiros dias de janeiro, ele passou mal, teve um infarto e foi levado às pressas para o único hospital de Iranduba e lá ficou internado, utilizando oxigênio constantemente. Depois de cinco dias, no domingo (17), a esposa também passou mal, sentiu os sintomas da Covid-19 e foi levada para o Hilda Freire.
Naquele dia, restavam apenas dois cilindros de oxigênio na unidade, mas já estavam esgotando. Francisco viajou para Manaus em busca do insumo, mas não conseguiu encontrar. Ou a empresa fabricante do oxigênio não dispunha mais do produto ou a marca dos cilindros não era compatível. Em uma ação de desespero, o hospital convocou moradores que pudessem ser voluntários na procura por oxigênio para abastecer a unidade. Como não conseguiu encher os cilindros na capital, Francisco voltou à Iranduba para tentar ajudar de outra maneira.
“A pastora tinha acabado de sofrer um começo de infarto. Tentaram reanimar, mas depois de uma hora ela morreu. Para ver se ela estava sendo atendida, eu pulei a janela do hospital para vê-la porque todo mundo ficou sem saber de notícia nenhuma, mas ela já havia entrado em óbito”
O marido ainda não sabe da morte da esposa. Amigos e familiares não pretendem dar a triste notícia até que ele apresente melhora no quadro de saúde. Enquanto isso, as perguntas por ela vão ficando sem resposta.
“Eu tive que mentir pra ele, que está tudo bem com ela. Estamos tentando mentir até onde a gente pode, mas parece que não está dando. A gente não sabe como fazer”
Depois de quase uma semana sem oxigênio, o Hospital passou a receber doações de cerca de 15 cilindros, por dia, de empresas e anônimos. O que chega é dividido entre os pacientes, mas outro problema atrapalhou a assistência. A tubulação por onde passa o oxigênio do hospital estava furada. Segundo Francisco, um técnico consertou de forma paliativa, mas preferiram colocar uma bala de oxigênio para cada pessoa internada.
“Cada dia é um sufoco. Só ontem [dia 20], duas pessoas morreram no Hilda Freire. Cada pessoa que doa é surreal, chegam pessoas que não são nem do ramo da política com duas balas [de oxigênio] e a gente liga no [tanque] geral do hospital e vai mantendo eles de pouquinho em pouquinho pra tentar socorrer. É uma agonia quando começa a acabar o oxigênio”
Outros municípios também passaram por desabastecimento. O Ministério Público do Amazonas investiga a morte de 30 pessoas em cidades do interior por causa da falta de oxigênio. Sete das vítimas estavam no Hospital Regional de Coari, a 450 km de Manaus.
O drama logístico fica claro nesse episódio. O município deveria ter recebido, na segunda-feira (18), 40 cilindros de oxigênio da Secretaria de Estado de Saúde (SES) e o único transporte possível era por meio aéreo. Porém, o voo de Manaus para Coari com os cilindros atrasou e a aeronave passou direto, porque o aeroporto da cidade não opera voos noturnos. O carregamento foi, então, para a cidade de Tefé e, de lá, levado em uma lancha para Coari, mas a embarcação também saiu atrasada. O oxigênio só chegou às 7h de terça-feira, mas o hospital tinha oxigênio até às 6h. Todos os sete pacientes que dependiam do oxigênio não puderam esperar e morreram.
A Defensoria Pública denuncia que outros municípios também registraram mortes de pacientes por falta de oxigênio ou por não terem sido removidos a tempo para hospitais de Manaus. Manacapuru registrou 11 mortes e, em Itacoatiara, duas pessoas morreram por falta de oxigênio e outras três por falta de um leito de UTI. Parintins teve duas vítimas à espera de remoção e Tefé 14 mortes, onde não há remoção de pacientes há 13 dias. Maués registrou uma morte por ausência de remoção.
Nenhum dos 61 municípios do interior dispõem de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e, em casos graves, os pacientes precisam ser transportados de avião para Manaus. Também não há aeronaves equipadas em quantidade suficiente, são três, segundo o Governo do Amazonas.
Para a Defensoria Pública do Amazonas, o Estado é negligente quando se trata de transferência de pacientes do interior em situação crítica. Pelo Plano de Contingência, essas pessoas deveriam ser removidas para a capital ou outro Estado, seja em hospital público ou particular, que ofereça assistência médica e possa salvar as vidas.
A situação é dramática ao ponto de o órgão solicitar na justiça a substituição dos beneficiados, no caso os pacientes, porque eles não resistem à demora do governo em atender a determinação judicial para transferir os doentes.
“Basicamente, as pessoas estão morrendo mesmo com decisões obrigando o Estado a transferi-las para UTI. Também estamos tentando conseguir as transferências de forma extrajudicial, mas está complicado. Ou a família consegue leito em hospital particular ou o paciente convalesce”, afirma o defensor público Murilo Monte, que atua no Polo da DPE-AM no Médio Amazonas.
Em Itacoatiara (a 176 km de Manaus), a Defensoria pedia a transferência de dez pacientes, dos quais cinco faleceram aguardando o Estado cumprir a decisão favorável. Nessa ação, defensores públicos pediram a substituição dos beneficiados que morreram por outros quatro pacientes. Dos cinco que sobreviveram, um permanece em estado grave e outros quatro tiveram melhoras no quadro clínico.
O problema é que a capital já está com 100% dos leitos ocupados e o número de contaminações sobe de maneira assustadora nos municípios.
Segundo a Fundação de Vigilância em Saúde, o Estado tem a maior taxa de transmissão (1,3) da Covid-19 no país. Cada grupo de 100 pessoas infectadas transmite o vírus para outras 130. Até o início de janeiro, as cidades do interior tinham mais infectados pelo coronavírus do que Manaus, mas o número de mortes é menor. O medo é que o cenário mude por causa da falta de assistência em caso de agravamento da doença. A nova variante do vírus, encontrada no Amazonas, é mais contagiosa e avança com rapidez no Estado, segundo o pesquisador da Fiocruz Amazônia Dr. Felipe Naveca.
A demora para o socorro chegar ao Amazonas
A primeira fala pública sobre a iminência de desabastecimento de oxigênio no Amazonas foi no dia 10 de janeiro, quatro dias antes do desabastecimento total dos hospitais, na página do Governo do Estado nas redes sociais. O Governador Wilson Lima disse que as empresas que fornecem oxigênio para o Amazonas informaram que não tinham mais condições de oferecer o produto na quantidade necessária e apelou para que população adotasse as medidas sanitárias e só saia de casa em situações imprescindíveis. A situação do Estado já era ‘dramática’, termo usado pelo próprio Governador.
“Nós já solicitamos o apoio do Exército Brasileiro para o transporte de cilindros de oxigênio vindos de Guarulhos, estamos viabilizando a montagem de mini usinas e também solicitamos aos Estados que verifiquem empresas que possam fornecer o produto para o Amazonas”, afirmou o governador nas redes sociais.
Entre os apelos por socorro está um e-mail enviado pelo Governo do Amazonas ao Estado do Rio de Janeiro, mas o ‘mailing’ estava desatualizado e o pedido de oxigênio foi enviado para o endereço eletrônico errado.
Um dia após o anúncio de Wilson Lima, chegou à Manaus o ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Havia a expectativa que o ministro falasse com a imprensa e respondesse aos questionamentos sobre a ajuda emergencial que o Governo Federal enviaria ao Estado para suprir a falta do oxigênio, o que não ocorreu. Estava prevista uma entrevista coletiva, mas Pazuello não compareceu ao auditório, permaneceu na chamada sala VIP do Centro de Convenções Vasco Vasques. As perguntas foram respondidas pelo Governador. Ao final do evento, Pazuello passou ao lado de jornalistas, que gritavam perguntas na tentativa de ouvir uma resposta, mas ele passou em silêncio, com passo apressado.
Naquele dia, houve um evento com a participação de representantes de todos os municípios do Amazonas e do Governo do Estado. O discurso do Ministério da Saúde foi, predominantemente, sobre o chamado “tratamento precoce” para Covid-19, o que não existe do ponto de vista científico.
Em momento algum do evento de quase cinco horas de duração foi falado a respeito do drama da iminente falta de oxigênio no Amazonas. O Ministro da Saúde negou prioridade, propriamente dita, ao Amazonas na distribuição das vacinas contra a Covid-19, pois faria a divisão proporcionalmente. Minutos antes o prefeito de Manaus David Almeida havia feito um apelo por prioridade. Depois, Wilson Lima pediu, ao menos, uma quantidade maior de doses – o que também não foi acatado. Pazuello se limitou a discursar sobre a dificuldade para aquisição das vacinas, necessidade de ampliação do atendimento nas Unidades Básicas de Saúde de Manaus e sobre o tratamento precoce.
“Não cabe não falar em atendimento e conduta precoce: virou caso de polícia […] O diagnóstico não é do teste, é do profissional médico. O tratamento, a prescrição, é do médico. E a orientação é precoce. E essa é a orientação de todos os conselhos de medicina”, disse Pazuello.
Cabe registrar que o Ministério da Saúde já contava com representante em Manaus desde a semana anterior e, em um pronunciamento ao lado do Governador Wilson Lima, a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro, defendeu abertamente a prescrição de medicamentos aos pacientes que apresentarem sintomas da Covid-19, mesmo sem o diagnóstico efetivo.
“Peço aos profissionais que prescrevam o tratamento precoce, essas orientações já foram dadas pelo MS desde maio, e hoje temos mais de 150 referências científicas assegurando. Você que tem medo, porque a gente ouve na imprensa, em alguns veículos que prestam mais desinformação do que informação séria, dizendo que essas medicações não funcionam. Hoje já temos evidenciais suficientes, inclusive avaliadas pelo Conselho Regional de Medicina do Amazonas, fazendo com que tenhamos tranquilidade para receber medicamento que vocês aqui no Amazonas já usam há muito tempo, com baixíssimo risco de causar efeitos colaterais”, disse.
A mesma representante do MS voltou a falar no evento em Manaus com a presença de Pazuello e, entre as medidas elencadas para auxiliar o Amazonas no enfrentamento da pandemia, estava o envio de 120 mil comprimidos de hidroxicloroquina, medicamento sem eficácia comprovada para a Covid-19.
O Ministério lançou, em Manaus, o aplicativo TrateCov, que serviria para identificar, a partir dos sintomas, se a pessoa está com Covid-19 e prescrever medicamentos sem comprovação científica. Segundo o Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, a eficácia do diagnóstico por meio do aplicativo é de 85% e chegaria a 100% com a avaliação do médico. Os prefeitos e secretários municipais de saúde foram orientados a adotar o aplicativo para agilizar o diagnóstico.
Na sequência do lançamento do aplicativo, o médico infectologista, coordenador do manual brasileiro de diagnóstico em infecção de corrente sanguínea da Anvisa, Ricardo Zimmerman foi convidado para uma palestra sobre o que seria o tratamento precoce da Covid-19. Ele sugeriu eficácia da hidroxicloroquina e mencionou a vitamina Zinco, Invermectina e Nitadoxanida como medicamentos que podem estar disponíveis à população como prevenção à doença.
A assessoria de comunicação do Ministério da saúde negou que o órgão estivesse incentivando os médicos e a população a utilizarem esses medicamentos. Afirmou somente que providencia meios para que os remédios não faltem.
Pazuello permaneceu em Manaus. Na quarta-feira (13), o Ministério da Saúde convocou a imprensa para acompanhar um pronunciamento, sem direito a perguntas. Nesse dia entrou no discurso do ministro a falta de oxigênio para abastecer os hospitais do Amazonas.
“Qual é a nossa fabricação? 28 [mil metros cúbicos]. Qual é a nossa demanda? 70. Sem contar com os novos leitos que irão abrir. Nós estamos em Manaus, não preciso contar pra ninguém onde é, quanto tempo demora a balsa vindo de Belém e assim o Estado começou a fazer a sua logística dentro do que podia, mas não tem como vencer uma demanda desse tamanho”.
O Ministério da Saúde informou que iria instalar 10 usinas geradoras de oxigênio em 4 dias na cidade de Manaus. Os equipamentos gerariam 5 mil m3 por dia – quantidade ainda insuficiente. Até o dia 29 chegaram 9 usinas, sendo que as primeiras começaram a funcionar no dia 24. São essas usinas, junto aos concentradores de oxigênio doados por outros Estados e empresas, que abastecem uma enfermaria de campanha (50 leitos) montada pelo Exército e o Hospital de Campanha Nilton Lins (40 leitos clínicos). O que chegou ainda não foi capaz de dar autonomia suficiente para abrir novos leitos de UTI. No Hospital de Campanha, por exemplo, são 22 leitos de Terapia Intensiva sem uso pela falta de oxigênio.
Cerca de uma semana após o desabastecimento de oxigênio, a Procuradoria Geral da República solicitou ao Supremo Tribunal Federal abertura de inquérito para investigar a conduta do ministro da saúde Eduardo Pazuello diante da crise no Amazonas. Isso porque um documento da PGR mostra que o órgão recebeu informações sobre um possível colapso no sistema de saúde de Manaus ainda em dezembro e foi informado, no dia 8 de janeiro, sobre a iminência falta de oxigênio. A PGR também aponta indícios de atraso para o envio efetivo de oxigênio hospitalar às cidades amazonenses.
A Polícia Federal já abriu inquérito para investigar a conduta do ministro e a investigação deve tramitar no Serviço de Inquéritos Especiais porque Pazuello, enquanto ministro, tem foro privilegiado.
O Governador Wilson Lima e o prefeito de Manaus David Almeida não ficam de fora da investigação. O procurador-geral da República, Augusto Aras, determinou abertura de inquérito no Superior Tribunal de Justiça para apurar eventual omissão de Wilson Lima e da Prefeitura de Manaus quanto à adoção das medidas necessárias ao enfrentamento da pandemia de covid-19, especialmente sobre o fornecimento de oxigênio.
O presidente Jair Bolsonaro defendeu o ministro da saúde Eduardo Pazuello, quando questionado sobre a investigação da Polícia Federal em relação à crise no Amazonas. “Trabalho excepcional, tremendo de um gestor”, afirmou. Bolsonaro disse também que não é “competência” nem “atribuição” do Governo levar oxigênio para o Amazonas e confirmou que o Pazuello soube da iminente falta de oxigênio com quase uma semana de antecedência.
A prefeitura também vai explicar aos órgãos de controle, como o TCE, sobre a distribuição prioritária das vacinas contra a Covid-19. Em 27 dias de governo, David Almeida enfrentou pedido de prisão preventiva por parte do Ministério Público. O Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado, o GAECO, instaurou procedimento de Investigação Criminal para apurar os desvios na distribuição de vacinas na capital do Amazonas.
O órgão apontou possíveis privilégios para servidores do alto escalão da Prefeitura que furaram a fila da vacinação. Segundo o MP, houve a contratação de 10 médicos para o cargo de gerente de projetos, com salário de R$ 9 mil. Entre eles estão duas residentes de medicina, contratadas na véspera e no dia em que começou a vacinação em Manaus. Na prática, as médicas atuavam em uma Unidade Básica de Saúde e passaram na frente de profissionais da linha de frente nos hospitais. A investigação continua.
Ana Maria Reis / Rádio Rio Mar