A vida é dom para todos ou privilégio para poucos?

Cada vez são mais os que pensam que a vida não é um dom de Deus e sim um privilégio de alguns. O Brasil é um país tremendamente desigual. Nos deparamos com o crescimento de inúmeros episódios de violência, agressividade e destruição, mas mesmo assim, a gente não reage. Isso nos leva a nos perguntarmos mais uma vez se a vida vale mais ou menos dependendo da situação da pessoa.

Editorial Por Luis Miguel Modino*

Quem é católico sabe que no tempo da quaresma, no Brasil acontece a Campanha da Fraternidade. Neste ano de 2020, essa campanha, nos convida a refletir sobre o tema: “Fraternidade e Vida: Dom e Compromisso”, e o lema “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele”. Os temas escolhidos sempre nos ajudam a olhar para nossa realidade e refletir sobre situações que ultrapassam os muros da Igreja, a descobrir o jeito de reagir desde a proposta do Evangelho.

Cada vez são mais os que pensam que a vida não é um dom de Deus e sim um privilégio de alguns. O Brasil é um país tremendamente desigual, com múltiplas situações de vida abandonada, com situações que desumanizam e desfiguram a dignidade do homem e da mulher. Vivemos numa sociedade onde o sofrimento, sobretudo dos mais pobres, só aumenta. Diante disso, a humanidade parece não mais sensibilizar-se com isso. Nos deparamos com o crescimento de inúmeros episódios de violência, agressividade e destruição, mas mesmo assim, a gente não reage.

O Papa Francisco nos fala sobre a globalização da indiferença, uma doença cada vez mais presente no meio de nós. Tem situações de dor que não são mais notícia. Em 2019, houve mais de 6.000 mortos, a maioria crianças, em decorrência de um brote de sarampo que atingiu mais de 310.000 pessoas no Congo. Quando as doenças ou a morte atingem os mais ricos os sentimentos são bem diferentes. Isso nos leva a nos perguntarmos mais uma vez se a vida vale mais ou menos dependendo da situação da pessoa.

A tirania do dinheiro, o capitalismo selvagem, o individualismo, marca o decorrer da vida. A pessoa vale na medida em que ela produz, até o ponto de que está se impondo uma cultura que justifica a morte de quem incomoda, seja pelo motivo que for. Junto com isso, vemos como o Estado perdeu a capacidade para frear a violência, fazendo com que o mal tenha se banalizadoe os grupos de extermínio decidam quem deve viver e quem deve morrer. Quando o Estado se debilita e é acuado, a violência e a morte tomam conta. Ainda tem quem pensa que o extermínio dos que não podem fazer parte do sistema é um alivio para a sociedade.

Não está na hora de assumir um compromisso comum em favor da vida? Acaso a gente não precisa de uma conversão que não deve ser apenas interna e individual, mas também externa e social? A atitude do bom samaritano tem que nos levar a uma reflexão que nos faça descobrir a necessidade de ver, solidarizar-se e cuidar, de ser uma Igreja samaritana, que mostre à sociedade que esse é o caminho a seguir.

Cada vez são mais as pessoas que não encontram um sentido à sua vida, o que demanda um maior “compromisso para amar o outro, servir o outro, cuidar do outro”, como nos dizia Dom Leonardo Steiner na abertura da Campanha da Fraternidade de 2020. Num local onde se concentra grande número de moradores de rua, diante dos quais a gente passa indiferente, ele nos desafiava a apreciar o dom da vida, “a percebermos como é grande viver, mas como é grande viver cuidando dos outros”.

Ser gente e, ainda mais, ser discípulos e discípulas de Jesus Cristo, tem que nos levar a superar a desconfiança para com o outro, que tem se instalado como uma atitude cada vez mais presente na sociedade, inclusive entre muitos cristãos. Se somos samaritanos, e essa é atitude que Jesus elogia, o outro nunca vai ser um inimigo e sim alguém que precisa da nossa compaixão.

Frente à tirania das armas, como pessoas inspiradas pelo Evangelho, façamos realidade a revolução do cuidado, do zelo, da preocupação mutua, vamos estabelecer relações de mútuo cuidado, compaixão, ternura, vamos fomentar a cultura do encontro. Vamos acolher, proteger, promover e integrar. As mudanças são fruto da conversão, uma atitude cada vez mais urgente e necessária.

Ouça: 

*Missionário espanhol e membro da equipe de comunicação da REPAM – Rede eclesial Pan Amazônica.