Editorial por Luis Miguel Modino*
A gente está vivendo de surpresa em surpresa, uma dinâmica que faz com que fiquemos chocados a cada momento. Na verdade, para melhor dizer, a gente já entrou em choque, numa situação em que parece que temos nos acostumado com atitudes que deveriam provocar fortes reações, mas que nos deixam sem ação.
As determinações do poder executivo só podem ser vistas como surpresas desagradáveis. A última, bom, em qualquer momento pode surgir mais uma, era o veto da obrigação de o governo fornecer água potável, higiene e leitos hospitalares a indígenas. Num país que supera 1,7 milhão de contágios, que beira os 70 mil mortos, segundo dados oficiais, sem contar as inúmeras subnotificações, onde os indígenas se tornaram um dos grupos com maior porcentagem de letalidade, a gente se depara com essa surpresa.
Na verdade, não deveria ser uma surpresa. Tudo isso é consequência de uma política de estado, que no Brasil, como em tantos outros países, decidiu exterminar os povos originários, principalmente na região amazônica. O motivo é que eles atrapalham o desenvolvimento, a economia, sim, essa economia que mata, essa economia que engorda o bolso de quem já está com ele cheio, às costas do sofrimento dos pequenos.
Como deter a máquina de morte em que tem se convertido a instituição que deveria garantir a vida plena para todos e todas? Se algo tem ficado claro no Brasil neste tempo de pandemia é que as coisas ruins atingem ainda mais a quem já vive em situação de vulnerabilidade. Os pobres estão pagando a conta de uma situação que não pode atingir a quem mais tem. Para quem mais tem, continua tendo, para quem nunca teve, cada vez tem menos, até o ponto de que muitos desses que sempre viveram apertados, agora estão perdendo até a possibilidade de continuar vivendo.
Em um país tão desigual, isso não é surpresa, nunca foi, a casa grande e a senzala não é coisa de hoje, mas continua sendo atual, tão atual quanto sempre foi, sem vontade de disfarçar. No final das contas um indígena a mais ou a menos não faz diferença para quem nunca se importou com a vida, bom, com a vida dos outros, porque a negação dos cuidados é sempre para os outros. Os salvadores da pátria sempre se acharam no direito de desfrutar de todos os direitos e cuidados, eles não querem ser vítimas de surpresas desagradáveis. Isso de que todos temos que morrer algum dia fica para os outros.
Resulta engraçado que quem só se preocupa com os interesses da família e do clube de fans, fale em que algo contradiz o interesse público. Ainda mais, que alguém que cada dia deturpa a Constituição brasileira, tenha a ousadia de falar de inconstitucionalidade para evitar ajudar os mais esquecidos e violentados na história do Brasil: os povos originários, legítimos donos de uma terra que eles sentem como Mãe.
O que fazer para evitar tanta surpresa diante de uma realidade cheia de surpresas desagradáveis? Quais passos devem ser dados como sociedade, depositária fidedigna da autêntica política, que deve nos conduzir a fazer realidade uma vida melhor para todos e todas? Como transformar as surpresas de morte e destruição em surpresas de vida e esperança? Quando Deus está acima de tudo, é porque Ele se torna a cada dia uma surpresa, que enche de vida o coração de cada homem e mulher. Nunca esqueçamos que todos e todas somos suas criaturas.
Ouça:
*Missionário espanhol e membro da equipe de comunicação da REPAM – Rede eclesial Pan Amazônica.