Editorial por Luis Miguel Modino*
Vivemos numa sociedade onde os números têm tomado conta da realidade. Tudo é quantificado, inclusive as vidas e as mortes. As pessoas se tornaram números, muitas vezes manipulados segundo o interesse de cada um. Também tem quem não se importa com esses números, pois quem sempre tem quantificado tudo em função dos números, elemento decisivo num sistema capitalista, nunca vai querer, ou vai saber, entender que atrás dos números existem histórias, rostos concretos.
A maioria das pessoas são incapazes de encarar os números, de entender o que significa que, oficialmente, tudo indica que o número é ainda maior, neste final de semana, vai se superar os duzentos mil falecidos no mundo em decorrência do coronavírus. Homens e mulheres de toda condição social, econômica, política, religiosa, de todas as raças e países, porque o COVID-19 não faz distinção, que tem falecido e sido sepultados, quase sempre em solidão.
Para suas famílias não são números, são pessoas queridas, que significam muito e que vão continuar em sua memória familiar para sempre. Eles choram impotentes diante de um sistema falido, que sempre respondeu aos interesses daqueles que queriam aumentar o número de ganâncias, diante de um sistema que oculta o número de falecidos, para não prejudicar os números de uma economia que mata, que destrói vidas, sobretudo dos mais fragilizados pela idade, pela falta de saúde, pela falta de moradia com condições mínimas de habitabilidade, pela fata de água encanada, de tratamento de esgoto, de tantas coisas que deveriam ser garantidas num país onde a desigualdade cada dia grita mais forte.
Para os poderosos são números, que às vezes, na medida em que representam uma ameaça, os preocupam, mas que de jeito nenhum estão interessados em fazer tudo o possível para salvar as vidas que estão atrás, em se preocupar com as famílias que ficaram sem alguém que fazia parte importante da sua vida. No final das contas, isso faz parte do sistema, para que alguns engordem os números de suas contas, eles têm que tirar o sustento dos outros, inclusive a vida. O pior de tudo é que aquele que foi eleito para cuidar de todos, ele diz não ser coveiro para estar se preocupando com o número de mortos, uma resposta que provoca risada e aplausos em quem o idolatra, o que demostra a falta de ética e de compromisso com a vida de um e dos outros.
Semanas atrás circulava nas redes um vídeo em que alguém perguntava para um homem até quantos mortos ele estaria disposto a considerar um número razoável. Sua resposta foi 70. De imediato, aparecia um grupo de pessoas, entre os quais estava sua família e amigos. Diante da mesma pergunta, formulada novamente, respondia com os olhos cheios de lágrimas que nenhum. Os números deixam de ser parte de uma lista, que fica na imaginação, que não mexe com a gente, quando eles recolhem a morte de um familiar, de um amigo. Aí a conversa muda, e o que era motivo de chacota se torna causa de choro e sofrimento.
Ninguém pode ser considerado como parte de uma lista, como um número a mais ou a menos. Atrás de cada falecido ou contagiado tem uma pessoa, que acima de sua condição, tem o direito de ser cuidado, de ser atendido com dignidade, de não ser tratado como uma bola que é chutada de cá para lá. Nunca podemos esquecer que a vida de todo ser humano é sagrada, e que, em consequência disso, merece o respeito que nem sempre ele tem, inclusive após da morte, também em tempo de pandemia, em que os cuidados e o respeito nunca deveriam ser recortados e sim aumentados.
Não repare só nos números, e sim nas pessoas que eles representam, veja neles rostos concretos, seja solidário com o sofrimento, com as lágrimas que esses números tem provocado. Reagir diante das situações é um elemento constitutivo na vida de toda pessoa, aquilo que nos torna humanos. Não se preocupar com quantos vão morrer é próprio de alguém que só pode ser considerado como um animal. Nunca se esqueça que não se trata de números e sim de pessoas.
Ouça: