Abuso contra crianças e adolescentes é dez vezes maior do que números oficiais, afirma juíza

Apenas um em cada dez casos de abuso sexual chegam ao conhecimento da autoridade policial ou das demais instituições da rede de proteção, apontando o quanto ainda é expressiva a subnotificação desses casos. Estatísticas do Disque 100, telefone nacional para denúncia de violação dos direitos humanos, indicam que, em 2019, houve 86.837 noticias de violação de direitos de crianças e adolescentes, dos quais 17 mil tratavam de violência sexual. Os dados foram apresentados pela juíza Articlina Oliveira Guimarães, titular da Vara Especializada em Crimes contra a Dignidade Sexual de Crianças e Adolescentes da Comarca de Manaus, na sexta-feira (17), durante sua participação no último dia de debates da “Semana Amazonense em Defesa do Estatuto da Criança e do Adolescente”.

“O Amazonas registrou 813 casos em 2019. No ano de 2017, tivemos notificados 686 e um total de 809, em 2018. Isso nem de longe reflete a realidade, sabemos que a grande maioria dos casos fica encoberto. Segundo o Ministério da Justiça, somente 7,5% dos casos de violência sexual são comunicados às autoridades policiais”, destacou a magistrada. A juíza Articilina afirma que a notificação é muito baixa, porque falar de uma violação na dignidade sexual é muito complicado e os pais pesam isso na hora de passar ao conhecimento da autoridade policial, pois avaliam que a vítima vai se expor ao repetir e rememorar a história e ao se apresentar para um exame constrangedor no Instituto Médico Legal.

“Há casos, é claro, em que não são notificados, porque o abusador mantém o controle sobre a família, ou a mãe tem uma dependência emocional, afetiva, financeira com ele. Assim, os números oficias não refletem a realidade”, disse a juíza. Ela esclareceu que a grande maioria dos casos de abuso sexual de crianças acontece dentro de casa e no ranking dos abusadores em primeiro lugar está o padrasto; seguido pelo pai; depois pela mãe – que se torna abusadora por omissão e responde por estupro quando deveria proteger o menor e depois irmãos e pessoas conhecidas.

“Acho muito significativa essa estatística, porque mostra que a família que, segundo o ECA tem o dever de proteger essa criança e esse adolescente e deveria colocá-los a salvo de toda forma de violência e de exploração, não está cumprindo esse dever. A gente precisa despertar essa consciência social na família; no Estado; na sociedade, de um modo geral, porque a criança, hoje, é um sujeito de direito e a família tem o dever de proteger”, afirmou.

Articlina também ressaltou o aumento do número de casos e da subnotificação no período de isolamento social pela pandemia da covid-19. “Os especialistas estão indicando que houve um aumento significativo nos casos de violência sexual envolvendo crianças e adolescentes, durante a pandemia. O isolamento social faz com que a criança fique cada vez mais sob o domínio do agressor e ela perde os tradicionais canais de comunicação de denúncia que tinha antes, como a escola, através do professor, que é o canal de 90% das denúncias que são feitas. Portanto, durante essa pandemia vai haver o aumento da subnotificação, e se terá a impressão de que os casos diminuíram, mas o que diminuiu foi a comunicação, enquanto a criança está ali sob domínio total, subjugada pelo agressor”, disse a magistrada.

A juíza salientou a importância de intensificar a divulgação dos canais de denúncia, como o Disque 100; as propagandas educativas e a orientação voltadas para o esclarecimento das vítimas, para que denunciem.

Outro assunto levantado pela magistrada foi os perigos da internet. Ela alerta que as crianças não têm maturidade e não estão preparadas para os perigos das redes sociais, que oferecem alto risco para casos de pedofilia. “Nós não sabemos com quem nossos filhos estão falando. Com o estudo a distância, as crianças precisam usar ferramentas tecnológicas com maior frequência e, com isso, os pais acabam perdendo o controle mais rígido. É preciso ter maior precaução e ter mais controle no uso da internet”, alerta a magistrada.

Articlina frisou que os agressores sexuais adoram essa ferramenta, onde se fazem passar por um jovem com características e linguajar de jovens, com gírias atuais. “Ele faz amizade com a criança e vai ganhar a confiança dela até chegar naquele momento em que vai pedir da criança aquelas fotos chamadas nudes. Aquela criança ou adolescente, confiando, já achando que é um amigo e já tendo despertada a sexualidade por ter confiança nele, vai trocar aquela foto íntima e a partir desse momento o abusador começa a chantagear a criança. Já tivemos casos dessa natureza, e depois que o agressor obtém as fotos, força a criança a encontrar com ele, por meio de chantagem”, explica.

A juíza ressalta que é um engano pensar que o abuso sexual exige o contato físico e que só com a conjunção carnal acontece o estupro. “O abusador pode se valer do canal da internet para praticar o abuso com atitudes se apossando de fotos e vídeos íntimos e depois passa a chantagear a criança”, reforça. Na opinião da juíza, é importante a educação sexual, pois a criança bem preparada e bem instruída vai ter reações diante desse abusador. “Em agosto aconteceu o reconhecimento do estupro virtual, que é o praticado pela internet, o que demonstra que a legislação está se reformulando para punir o abusador virtual”, acrescentou.

Tipos de abuso 

A delegada Joyce Coelho, titular da Delegacia Especializada em Proteção à Criança e ao Adolescente, da Polícia Civil do Amazonas, também participou da mesa-redonda e discorreu sobre os tipos de abuso, incluindo os que acontecem pela internet em época de afastamento social e os crimes de abuso e exploração denunciados pela própria vítima e pela família; também as crianças agenciadas por pessoas que já vieram da realidade de exploração sexual e as vítimas exploradas que veem isso como uma saída para realização dos próprios sonhos.

A delegada traçou um perfil das vítimas de abuso e exploração sexual. “São meninas de classe social inferior; de grande vulnerabilidade social e econômica; de áreas periféricas que são mais facilmente atraídas para exploração sexual. A gente pode observar que é mais possível encontrar vítimas de exploração sexual próximo a rodovias, postos de gasolina e, trazendo para nossa realidade, em áreas centrais, perto dos barcos, dos transportes fluviais. É só sair da nossa zona de conforto, pegar o carro e dar uma voltinha após as 22h no Centro de Manaus que a gente vai ser apresentado à realidade nua e crua”, explicou a delegada, que disse já ter ouvido de uma vítima retirada da exploração sexual que a delegada “havia acabado com os seus sonhos “. A delegada frisou que os piores trabalhos infantis são a exploração sexual infantil e a exploração pelo tráfico.

O defensor público Sérgio Enrique Ochoa Guimarães, outro convidado da mesa de debates, explicou que para poder entender a violência sexual infantil é preciso se aprofundar no conhecimento da sexualidade da infância e da juventude. O defensor observou que na violência e abuso sexual a vítima não sofre apenas pelo ato, mas bem mais pelo contexto familiar. “As vítimas sofriam muito mais quando se sentiam desamparadas pela família”, salientou. O defensor relatou que passou a estudar e pesquisar o contexto histórico para entender o assunto e deixou claro que a necessidade de proteção ao direito da criança se sobrepõe a uma defesa a todo custo do agressor, bem como a necessidade de uma educação e orientação sexual para crianças e adolescentes de acordo com seu grau de entendimento. De forma geral, o defensor lembrou que é histórico o contexto em que a sexualidade da menina é castrada em nome da preservação, enquanto a do menino é incentivada, e essa cultura remonta ao século 19.

“Foi nesse período que houve uma definição do comportamento sexual com a definição da heteronormatividade, que traz implicações importantes principalmente com os papéis de gênero. A partir daí, a gente passa a definir o que é ser um menino, o que é ser uma menina, que tipo de comportamento cabe a um menino e cabe a uma menina. E por que isso é importante? Quando a gente analisa na prática a população vítima da violência sexual, principalmente crianças e adolescentes, percebe que não é exclusividade da vítima ser menina, os meninos também são vitimas. E entra em questão uma situação muito importante, que é: qual o espaço que a criança tem dentro da sua família; do seu contexto social; dos seus cuidadores para tratar sobre a sexualidade. Qual o contato que ela tem com a educação sexual de uma forma adequada à sua idade? A gente percebe que é baixo o grau de educação sexual na nossa infância, até hoje, e isso vulnerabiliza as crianças. Elas não têm a oportunidade de entar em contato com esse conhecimento para poder se proteger e também não se sentem à vontade para falar sobre o assunto. Isso, na minha opinião, deve ser colocado em prática por todos nós que fazemos parte da rede de proteção, porque se não vamos esperar o problema acontecer”, salientou o defensor.

Acolhimento integral 

A secretária-executiva da Rede ECPAT Brasil – uma coalizão de organizações da sociedade civil que trabalha para a eliminação da exploração sexual de crianças e adolescentes – Amanda Cristina Ferreira, afirmou ter havido muitas conquistas com o ECA, mas defendeu que é necessário total integração, apoio e diálogo entre os órgãos integrantes da rede de proteção de crianças e adolescentes, bem como a garantia de investimento na estrutura de acolhimento a crianças e jovens vitimas de exploração e abuso sexual.

Militante dos direitos humanos de crianças e adolescentes e presidente do Instituto de Assistência à Criança e ao Adolescente Santo Antônio (Iacas), Amanda Ferreira fez um apelo ao Poder Executivo para que nomeie, com urgência, o Conselho de Direito da Infância e Juventude do Estado, com objetivo de que sejam liberados os recursos federais para a construção de Centros Integrados de Proteção.

Ela explicou que cabe ao Conselho a fixação de critérios de utilização, através de planos de aplicação das doações subsidiadas e demais receitas, aplicando necessariamente percentual para incentivo ao acolhimento. De acordo com Amanda, o Amazonas possui R$ 7,5 milhões em recursos federais para investimento na construção dessa estrutura no Amazonas.

“O Conselho é o responsável pelas políticas da infância em todo lugar, do Município à esfera federal, e nós estamos há oito meses sem Conselho de Direito no Estado do Amazonas, porque o governador ainda não enviou os nomes dos conselheiros para o Diário Oficial e estamos todo esse período sem poder movimentar o recurso que o Ministério Público do Trabalho doou para a construção do Centro Integrado de Acolhimento a Crianças e Adolescentes”, afirmou. De acordo com ela, o repasse será em parcelas do valor doado em 2019 e que a não-nomeação do Conselho impede a realização do plano arquitetônico de um Centro Integrado onde estariam concentrados todos os serviços da rede de apoio sem ter que deslocar o menor vitima para os órgãos situados em pontos diferentes da cidade.

“Antes o governo falava que não tinha recurso para a construção de um Centro Integrado, mas já existe o dinheiro, falta apenas nomear um conselho, de fato, porque de direito as pessoas que estão lá já foram eleitas. Mas até agora não houve nomeação. É preciso urgência para discutir politica para amparo integral ao direito da criança e do adolescente”, frisou.

A secretária falou sobre o histórico de exploração sexual de crianças, em sua maioria indígenas e negras, que sofrem exploração e abuso desde o período da colonização brasileira, mas que a defesa do direito não possui raça e o ECA é claro quando define o pleno direito de proteção de todas as crianças e jovens no Brasil.

Fonte: TJ/AM

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil