*Editorial por Luís Miguel Modino
As vezes nos deparamos com situações que provocam sentimento de indignação, que nos mostram que fazemos parte de uma sociedade injusta, profundamente injusta, onde a dignidade da pessoa não é o que determina as decisões. Nos últimos dias, a sociedade brasileira tem conhecido o que aconteceu no julgamento contra o empresário André de Camargo Aranha, acusado de estuprar a jovem Mariana Ferrer.
O fato dele ser absolvido já é motivo suficiente de indignação, mas isso piora quando a gente sabe o que aconteceu na sala de júri, mostrando mais um episódio das mazelas de um sistema judiciário profundamente corrupto e que quase sempre escolhe o lado da sociedade dominante, responsabilizando vítimas inocentes, dentre elas as mulheres, tradicionalmente submetidas pelo sistema.
A indignação e inconformidade em relação às cenas e argumentos estarrecedores da audiência tem tomado conta de parte sociedade brasileira, mas o que acontece com aqueles que ainda justificam esse tipo de crime, aqueles que acusam impunemente, inclusive fazendo parte do judiciário, quem deveria ser defendida e protegida, aquela que a olho nu, qualquer pessoa de boa vontade, enxergaria como vítima.
O feminicídio é uma realidade presente na sociedade brasileira, uma situação que só tem aumentado neste tempo de pandemia, diante do silêncio cumplice de uma sociedade profundamente machista e classista. Os estupros coletivos, que no Brasil atingem uma mulher a cada duas horas e meia, a cultura misógina, fazem parte do dia-a-dia, como algo assumido, que não desperta nenhuma reação contundente. Nenhuma mulher precisa reivindicar o direito à defesa, isso deveria ser garantido de fato, mesmo sabendo que a lei o garante. Mas, infelizmente, pisotear a Lei e a Constituição tem se tornado uma prática comum, inclusive por parte do sistema judiciário brasileiro.
O que dizer de um promotor de justiça que sustenta uma tese de “estupro culposo”, que nem sequer existe na legislação brasileira? Ficar calado diante desses absurdos faz com que possa ser estabelecido um perigoso precedente de culpabilizar as vítimas e inocentar os agressores. Uma sociedade deve se fundamentar no cuidado e proteção aos indefesos como base de crescimento, mas situações como o caso Mariana Ferrer nos mostra que estamos nos distanciando perigosamente desse ideal.
Não podemos continuar fazendo de conta que tudo está bem, que nada está acontecendo, a sociedade brasileira tem que exigir a apuração imediata das responsabilidades de todos os agentes envolvidos. Se não queremos perder o norte, se ainda acreditamos na justiça, estamos diante de uma situação que exige que Mariana Ferrer possa ter o direito à reparação pelas violências e pelas humilhações sofridas. Nunca uma vítima pode ser responsabilizada por um crime cometido contra ela mesma.
A sociedade deve ser uma construção comum, onde todos e todas possam ser envolvidos. As lutas devem ser em favor do reconhecimento dos direitos coletivos, não podemos nos limitarmos àquilo que nos atinge diretamente, pois uma sociedade injusta provoca a generalização de situações que nos desumanizam, que nos fazem perder o respeito por aquilo que é mais sagrado, que é a vida e dignidade de todo ser humano. Uma sociedade que olha para o outro lado e se cala diante das injustiças, perde o norte, e isso gera ainda mais violência.
Ouça:
*Missionário espanhol e membro da equipe de comunicação da REPAM – Rede eclesial Pan Amazônica.